‘Dançando no deserto não há República Islâmica’, diz iraniano refugiado na França

Afshin Ghaffarian tem a história contada no cinema e revela como é ser um dançarino em um país onde dançar é pecado

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O iraniano Afshin Ghaffarian, ao centro, entre Freida Pinto e Reece Ritchie, protagonistas do filme baseado em sua história
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O iraniano Afshin Ghaffarian, ao centro, entre Freida Pinto e Reece Ritchie, protagonistas do filme baseado em sua história - Divulgação

RIO — Em “Dançarino do deserto” um pouco da história dos artistas iranianos é contada tendo Afshin Ghaffarian, que hoje vive na França, como exemplo das limitações para a classe naquele país. O dançarino, que deu seus primeiros passos em um centro cultural ilegal e na universidade formou um grupo de dança clandestino — fala sobre as ausências de liberdades no Irã, a repressão política constante e sua visão sobre as manifestações que tomaram conta da capital, Teerã, antes e depois das eleições de 2009 — e que acabaram reelegendo o então presidente Mahmoud Ahmadinejad.
Por que usar um deserto para uma apresentação de dança?
Saímos de Teerã para buscar um lugar onde poderia acontecer a performance. Depois de algumas horas nos encontramos no meio do nada e percebemos que aquilo era bom, era realmente puro e pensamos: “Aqui não há República Islâmica!”. Estávamos com medo, me lembro que no dia da apresentação estávamos todos preocupados em saber se havia alguém curioso sobre o que estava acontecendo, porque tudo o que precisam fazer era pegar o telefone e dizer o que estava ocorrendo ali. Teria sido um grande problema.
Qual o significado daquela apresentação para vocês?
(A dança) Era sobre o nascimento, sobre duas pessoas que nasceram no Irã. Não havia nenhum texto, era apenas o movimento — nós tentamos apresentar isso com o corpo. Era sobre as pessoas, meninas e meninos que nasceram e se conheceram, uma relação muito difícil no Irã, o encontro entre um menino e uma menina, as limitações, as coisas que são proibidas. O conceito era fazer algo contra o poder central, estávamos tentando dar ao nosso público um presente, algo novo, algo puro. Esse foi o conceito que tínhamos em mente.
No filme há uma crítica ao uso excessivo de heroína no país, que seria distribuído pelo governo. Muitos artistas usam heroína?
Quando eu descobri que ela (Elahe, seu par no filme) ainda estava usando drogas, fiquei realmente irritado. Ela era um exemplo muito bom do artista no Irã, a quem o governo faz morrer. Acho que é realmente difícil de descrever o que senti, mas fiquei desapontado.
Qual a lembrança daqueles dias antes e depois das eleições em 2009, mostrados no filme?
Antes das eleições havia grande esperança, os jovens queriam votar em (Mir Hossein) Moussavi. Eu não queria porque sentia que nada iria mudar, que tudo continuaria na mesma. Eu não posso votar para uma República Islâmica: se a Constituição continua a mesma, não posso votar neste quadro. Então, disse aos meus amigos que iria boicotar a eleição, mas eles disseram que, se eu não participasse, eles (a República Islâmica) iriam continuar nos enganando. Mas se eu fosse com as milhões de pessoas que iriam votar em Moussavi, eles não poderiam trapacear. Não foi o que aconteceu. Fomos enganados e eles venceram.
Como foi a reação após os resultados?
Às 3h ou 4h, Ahmadinejad já tinha 20 milhões de votos e Moussavi 13 milhões. Nós ficamos chocados! Tivemos um jantar naquela noite e conversamos sobre como a eleição deve ter sido fraudada — 20 milhões de votos certamente não era verdade. E depois, quando se anunciou oficialmente que Ahmadinejad havia vencido com 24 milhões e o Estado do Irã confirmou o resultado, nós queríamos gritar: “Não! Nós votamos, desta vez nós votamos! Você nos traiu e não é justo”. Todo mundo estava realmente com raiva, ficou claro para todo mundo que eles tinham enganado o povo.
E o movimento Verde ganhou força?
Depois disso ele mudou completamente, as coisas aconteceram. Ficou claro que era um movimento, não se tratava de uma eleição, sobre Moussavi ou Ahmadinejad. Era sobre a democracia, sobre a liberdade. Três dias após a eleição, houve a grande marcha com 3 milhões de pessoas nas ruas e eu estava lá com os meus amigos da universidade. Vi pela primeira vez no Irã uma demonstração maciça como aquela. Era um exército de pessoas e eles (o Estado) usaram de violência contra nós, várias pessoas foram mortas naquele dia. Foi uma repressão real.
Qual foi sua participação na manifestação?
Eu levei uma câmara de vídeo para a passeata, o que era muito perigoso, mas senti que tinha que fazer aquilo. Estava na rua com a câmera, apenas filmando a demonstração e de repente alguém se aproximou e perguntou o que eu estava fazendo, o que eu estava segurando. Quando ele se deu conta do que era, me vi entre quatro deles que me prenderam, me levaram a um beco, apreenderam tudo que tinha no meu bolso, meu celular, tudo. A partir desse momento eu não consegui ver mais nada, só podia ouvir. Eu lembro de estar dentro de uma van por horas, foi horrível, eu estava sufocando. Nós não sabíamos o que ia acontecer e eles não nos davam qualquer informação. Até que nos disseram que estávamos indo para fora da cidade e que iam nos matar. Esse tipo de tortura psicológica... Ao mesmo tempo começaram a nos bater de verdade, foi horrível.
Como eles descobriram quem você era?
Um dos homens encontrou os cartões de identidade que eu tinha na minha carteira, que indicava que eu era um ator de teatro. E disse ironicamente: “Há um artista entre nós, um ator. Batam nele artisticamente”. Me bateram muito, nos meus braços e nas minhas costas, mas felizmente nada foi quebrado. Em um ponto, eles pararam o carro, e fomos jogados para fora sem nada. Eu não sabia o que fazer, mas depois de cerca de dez minutos vi uma moto na estrada à frente, falei com o motorista e perguntei se ele estava indo para Teerã .
Como essa experiência mudou sua vida?
Esse foi um momento importante, porque percebi que faria tudo o que pudesse pelo meu país e, se um dia deixasse o Irã, gostaria de não ter nenhum arrependimento. Eu saberia que teria feito o melhor que pude, e não teria apenas fugido. Na época, eu não sabia que o festival de teatro era uma oportunidade para deixar o país, mas disse a mim mesmo: “Se eu for embora sei que fiz o meu melhor”.
Como você deixou o Irã?
Um festival de teatro na Alemanha havia nos convidado para nos apresentar lá e meus amigos me disseram que, se eu tivesse a oportunidade, deveria ir. Depois que eu aceitei, não havia outra escolha. Eu ouvi que havia muitas pessoas indo para o aeroporto, tentando deixar o país e eles estavam impedindo as pessoas de sair. Por isso, cheguei lá muito cedo, às 6h do dia 11 de outubro. E deixei o Irã. Me lembro de entrar no avião, olhar para o aeroporto de Teerã pela última vez e, em seguida, decolar. Saí de Teerã, saí do Irã. Depois de apenas duas ou três horas estava na Alemanha! Em Dusseldorf.
Como foi a performance lá?
Lá vi que não poderia fazer a mesma apresentação de antes. Senti que o governo queria fingir que estava tudo ok no Irã, como se nada tivesse acontecido nas eleições. Que eles estavam jogando com a gente, nos enviaram como missionários do governo. Com todos estes sentimentos combinados decidi fazer uma performance diferente, tornando-me um manifestante outra vez. Depois, li um pequeno artigo sobre mim em um jornal radical. Escreveram que havia um fugitivo chamado Afshin Ghaffarian, que queria lutar contra a República Islâmica através da dança.

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